130 coisas sobre as quais escrever #93 [Texto de Morgana Corrêa Guimarães]


93. Escreva sobre uma visita inesperada.

É tarde e está frio. Ela não sabe precisamente que horas são, ela não olha mais para o relógio depois que escurece, ela acha que as horas demoram mais a passar. Apesar de já não escutar muito bem — o closed caption na televisão está sempre ligado — as batidas na porta do primeiro andar retumbam em seus ouvidos. O som foi tão claro e límpido que ela achou que o seu cérebro tivesse dado algum curto-circuito. 
Dona Antônia se senta, tentando ouvir melhor, e já está quase desistindo e se convencendo de que foi mesmo alguma invenção de seu cérebro velho, quando as batidas voltam a ecoar por toda a casa. São exatamente três e cada uma delas lhe provoca um arrepio gélido na coluna. 
Ela não sabe o porquê, talvez fosse a curiosidade ou talvez estivesse cansada de estar sozinha o tempo todo, mas ela se enrola no roupão, enfia os pés na pantufa rosa —  a qual foi um presente da sua caçula e Dona Antônia se recusa a jogar fora — e desce as escadas. 
Não há mais batidas na porta, mesmo com os seus passos arrastados e lentos. Dona Antônia destranca a porta, o que demora um pouco, devido às três trancas diferentes, não há nada de muito valor na casa, mas o seguro morreu de velho. O vento gelado invade a casa, entra por debaixo do roupão de Dona Antônia e bagunça seus cabelos brancos. O visitante, na verdade, é a visitante. É uma jovem, as mechas negras descem por seus ombros até a metade das costas e o seu rosto está coberto pelo capuz do poncho de lã grossa, em vista do frio e da neve (Dona Antônia só percebe agora que há neve lá fora, mesmo fora de época).
— Boa noite, Dona Antônia, posso entrar? Está bem frio aqui fora — a menina diz, se abraçando e batendo o queixo.
— Claro, claro, entre querida. — Dona Antônia ainda não sabe o porquê, mas deixa uma desconhecida entrar em sua casa de madrugada, ela só sabe que não sente nem um resquício de medo, pelo contrário, sente uma calma tomando conta de todo o seu corpo. 
Dona Antônia a leva para a sala, onde a lareira elétrica está ligada, ela sabe que é um pouco perigoso deixá-la ligada tanto tempo, mas ela não dorme a maior parte da noite e é a única coisa que a esquenta. Ela oferece um café para a visitante, a qual aceita de bom grado. 
Dona Antônia coloca a bandeja com o café na mesinha de centro e deixa a jovem se servir. Agora, sem o capuz e na luz da lareira, Dona Antônia percebe o quanto a visitante é bonita. O cabelo ondulado é do mesmo preto dos olhos, a pele é branca como a neve que está caindo; a boca é cheia e o sorriso mostra os dentes perfeitos. Na verdade, ela é linda e familiar, Dona Antônia não sabe de onde, mas esse rosto é familiar.
— Hum, o café está maravilhoso, Dona Antônia. Forte, do jeitinho que eu gosto.
Dona Antônia não responde, fascinada com a familiaridade daquele rosto.
— A senhora deixa a lareira ligada a noite toda? – Pergunta a jovem, olhando para o fogo.
— Sim, eu deixo. Eu sei que pode pegar fogo ou estragar, mas essa lareira está conosco desde que minhas meninas eram jovens. E meus netos a adoram, a mãe deles prefere aquecedor. Ela acha que os meninos são burros o suficiente para enfiar a mão no fogo.
— Tenho certeza de que é só por precaução, afinal, o seguro morreu de velho. Era o que minha mãe sempre me dizia. — Ao falar isso, a jovem sorri para Dona Antônia, fazendo o sentimento de familiaridade crescer ainda mais. — Quantos netos a senhora tem? — A anfitriã simpatizou muito com a moça, talvez seja pelo fato de que ela a chama de “senhora” e não “você”, apesar de Dona Antônia não se importar, é bom saber que nem todos os antigos costumes foram extintos.
— Três. Dois meninos gêmeos e a caçula da família.
— Aposto que a menina é o seu xodó. Você sempre quis uma netinha.
—  O quê? — Dona Antônia questiona, intrigada por ela saber uma coisa tão pessoal assim. A jovem apenas a olha e sorri.
— Quantas filhas a senhora tem? 
— Duas. — Dona Antônia não hesita na resposta e não se corrige, afinal, ela tem mesmo duas filhas. — A mais velha é advogada e é a mãe dos meus três netos.
— E a mais nova? — A jovem pergunta após bebericar seu café.
— Uma pneumonia a levou quando ela ainda tinha dez anos, e isso já faz trinta anos.
— Como ela era? — Pergunta a visitante com curiosidade.
— Ela era um doce. Era muito educada e nunca desobedecia, embora tenha me respondido poucas vezes. Ela queria viajar o mundo inteiro e queria ser veterinária. Ela sempre quis ter um cachorro, mas eu nunca deixei — Dona Antônia diz com um pouco de amargor e remorso. — Ela tinha um nome para o cãozinho, era engraçado, mas eu não consigo lembrar qual era.
— Era Ludo, apelido para Ludovico. — A jovem responde de prontidão, mas com uma voz suave e com um sorriso, sempre com um sorriso.
— Isso, era esse o nome — Dona Antônia responde embasbacada. O sentimento de que a conhece de algum lugar está cada vez maior. — Como você sabe?
— Eu sei de muitas coisas, Dona Antônia. — O sorriso de novo. — Como ela era fisicamente?
— Ela tinha cabelos pretos bem longos, recusava-se a cortar. A pele dela era branquinha e a chamávamos de Branca de Neve — as lágrimas vêm aos olhos de Dona Antônia, ela as repreende, ela é uma mulher firme, mas esse é seu ponto fraco. — Ela andava com uma boneca, arrastava para lá e para cá, ela a chamava de...
— Bárbara — as duas dizem em uníssono. Dona Antônia a olha, a jovem está olhando-a de volta e sorrindo.  Esse sorriso... Dona Antônia a reconhece e deixa sua xícara de café cair no tapete e manchando-o, mas ela não se importa. Ela não sabe como demorou tanto para reconhecê-la. O cabelo, a pele, os olhos, o sorriso... A última vez que a viu foi há trinta anos. Mas, ah, ela é inesquecível. Essa na sua frente é uma versão mais velha de quem ela tanto sentia saudades.
— Ana? — Apesar de já saber a resposta, ela pergunta mesmo assim.
— Oi, mãe. — As lágrimas que tanto Dona Antônia lutou para que ficassem nos olhos, transbordam uma atrás da outra. 
— O que você está fazendo aqui, meu amor? — Dona Antônia pergunta sem fôlego, apesar de também já saber a resposta.
Ana levanta, tira o poncho e estende a mão enluvada para a mãe. Dona Antônia não pergunta, apenas dá a mão para a filha e se levanta. Ana a leva até a porta e a abre. Já está amanhecendo e parou de nevar. Não faz frio, apesar de ainda haver neve no chão. 

As duas andam de mãos dadas sob o sol nascente, Dona Antônia não liga para o que está deixando para trás, ela não se sente tão feliz assim há muito tempo.

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